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terça-feira, novembro 06, 2007

encontro de despedida

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Encontro de despedida

Os amigos reuniram-se à mesa do bar. Chegaram todos com um ar de preocupação. Sabiam que, desta vez, havia algum assunto sério a ser tratado entre as rodadas de cerveja geladíssima. Havia algo de grave na voz do Trema quando receberam a convocação por telefone.

Chegaram quase todos ao mesmo tempo. O Ponto, a Vírgula, a Crase, o Ditongo, os gêmeos Acento Agudo e Acento Circunflexo, o Til – que levou o sobrinho porque não tinha com quem deixá-lo –, o Travessão e a Cedilha. O Sufixo, como sempre, chegou depois de todo mundo.

Antes de pedir a primeira cerveja, o Trema foi logo falando, a voz meio embargada.

– Meus amigos, chamei todos vocês aqui porque o assunto é grave. Não vou enrolar porque considero que vocês são como minha família. Eu estou no fim. Meus dias estão contados.

O Travessão interveio, rápido.

– Peraí. Não dá para engolir a seco uma notícia dessas. Ô, Cafu, desce umas cervas aí, urgente, por favor!

Alguns fizeram cara de espanto. Pura encenação. Lêem jornais, portanto, já sabiam. Outros, como o Ditongo e a Crase, realmente se assustaram.

– Como assim? Você tá brincando, Tre! – Disse a Crase, já com os olhos marejados.

– É a pura verdade. Pura e triste verdade. –Tomou um longo gole de cerveja e explicou:

– É a reforma ortográfica. Será implantada em 2008. Portanto, no ano que vem eu não estarei mais aqui.

– Não é possível! – reagiu o Ditongo, como sempre desavisado.

– É, sim. Eu mesmo li meu anúncio fúnebre na Folha de S.Paulo.

Tira um recorte amassado do bolso da calça. Quase chorando, lê para os amigos:

– Abre aspas: o fim do trema está decretado desde dezembro do ano passado. Os dois pontos que ficam em cima da letra u sobrevivem no corredor da morte à espera de seus algozes. Fecha aspas.

Silêncio na mesa.

– Como vêem, são meus últimos dias. Tantos anos de serviços prestados à língua portuguesa não valeram nada. Simplesmente decretaram dia e hora para minha morte.

– Meu Deus. Que absurdo! – reage a Cedilha, lutando para segurar as lágrimas.

– Pois é. Inventaram que é preciso unificar a ortografia entre os oito países que usam a língua portuguesa. Argumentam que isso vai aproximar as culturas. E eu, amigos, serei oferecido em sacrifício.

Há um misto de perplexidade, revolta e pena em volta da mesa.

Algum burocrata da ortografia decidiu que eu sou inútil. Acham que eu sou um ungüento aguado.

– Aguado pode ser. Ungüento, não.

– Unguento – protesta o Travessão, sob o olhar de reprovação geral.

– Desculpe, mas vocês sabem: eu perco o amigo, mas não perco a piada.

O Trema procura ignorar. Conhece o amigo há décadas. Sabe que ele não perde a velha mania. Continua a conversa lamuriante.

– Ainda quiseram me consolar, dizendo que eu, companheiro de vocês em tantas jornadas, sobreviverei em nomes próprios. Balela. Eu sobreviveria na Alemanha, com seus Günter e Müller da vida, mas aqui, no Brasil, meu destino está selado.

Pedem mais cerveja.

– Por isso eu chamei vocês. Fiz questão que fosse aqui no Bar Azul, que a gente freqüenta desde o tempo da faculdade. Aqui comemoramos momentos felizes e choramos momentos tristes. Logo, só vocês poderão freqüentar isto aqui. Eu serei apenas lembrança. Aliás, nem vocês poderão freqüentar. Terão de frequentar.

Todos se abraçam. Alguém propõe um brinde, dizendo que a amizade entre o grupo permanecerá para sempre, mesmo que um dia reste apenas um para beber no bar. É nesse momento que notam a ausência do Hífen.

– Alguém sabe dele? – pergunta o Trema.

O Acento Agudo sabe.

– Não vem. Está deprimido. A reforma ortográfica também mexeu com ele. O Hífen não será mais usado quando o segundo elemento começa com s ou r. Ele já sabe que nesses casos será substituído pela duplicação das consoantes. Sacaram? No futuro só haverá antirreligioso, contrarregra, antissemita. Ele também deixará de ser usado quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente, como extraescolar, aeroespacial e autoestrada.

– O Hífen nunca lidou muito bem com as perdas da vida – lembra o Trema. Mas pelo menos ele vai continuar existindo.

– Todos nós saímos perdendo com essa reforma – pondera um dos gêmeos. – Eu, Acento Circunflexo, por exemplo, vou ser defenestrado das terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos crer, dar, ler, ver e seus derivados. Quando vocês lerem crêem, vêem, lêem e dêem sentirão minha ausência. Também vão me tirar das palavras terminadas em hiato oo. Quem tiver enjoo no voo não terá minha companhia.

Seu irmão gêmeo também choraminga.

– Vocês sabem que tudo que afeta meu irmão afeta a mim também – intervém o Acento Agudo. Eu perderei minha função nos ditongos abertos ei e oi de palavras paroxítonas. Não me querem mais em idéia , jibóia e assembléia, por exemplo. Também ficarei de fora nas palavras paroxítonas, com i e u tônicos, quando precedidos de ditongo. Feiúra e baiúca passarão a ser feiura e baiuca. Mas nesses casos tudo bem. Eu nunca gostei de feiúra e baiúca. Duro mesmo é saber que serei extirpado sem dó nas formas verbais que têm o acento tônico na raiz, com "u" tônico precedido de g ou q e seguido de e ou i. Modéstia à parte, sempre me orgulhei de dar um ar aristocrático a algumas formas de verbo. Ouçam bem: averigúe, apazigúe, argúem. Sem mim, isso não terá a menor graça.

– Só sobreviveremos em nossa integralidade nos livros da antigüidade – observa o Trema, melancólico. – E pensar que até antigüidade vai virar antiguidade... Imagine as conseqüências dessa mudança. Quer dizer, as consequências ...

A esta altura, já estão todos meio embriagados. O Ponto, sempre otimista, lembra que pelo menos um membro da turma sairá ganhando com a reforma.

– O Alfabeto, gente. Vão incorporar ao Alfabeto as letras k, w e y.

– É por isso que ele não veio – explica a Vírgula. Disse que ia na Leroy Merlin porque agora vai ter de aumentar a casa.

Alguém chama o garçom.

– Cafu, mais cerveja. Nós vamos agüentar firme, aqui com o Trema. Vamos abrir uma trincheira etílica em defesa do nosso velho e bom amigo.

Propõem outro brinde. E voltam a chamar o garçom, que já se distanciava.

– Traz também uma porção de lingüiça calabresa. Sem cebola. Mas não esquece do trema, por favor!

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